Robin Williams, o rosto amargo da comédia
VASCO CÂMARA 12/08/2014
Já está no Olimpo daqueles comediantes, dos que começaram por se expor sozinhos com um microfone, os stand up comedians, cujo percurso pela gargalhada é um duelo pessoal sem tréguas. Morreu Robin Williams.
À porta da Comedy Store, 1978
WYNN MILLER
Com a actriz Pam Dawber na sitcom “Mork e Mindy”, transmitida pela ABC, 1978
ABC
No “Saturday Night Live”, também em 1978
RON GALELLA
E
m 1980 na sitcom televisiva “Mork e Mindy”SILVER SCREEN COLLECTION
Com Penny Marshall e Henry Winkler em “Mork e Mindy”
ABC
Num sketch sobre os Jogos Olímpicos de Inverno para o “Saturday Night Live”, em 1984
NBC
DR
"Clube dos Poetas Mortos", 1989
DR
"O Bom Rebelde", 1997
DR
Wiiliams e o Óscar de melhor actor secundário em 1998, ao lado de Kim Basinger, Helen Hunt e Jack Nicholson
AFP/HECTOR MATA
Numa cena do filme “Patch Adams: O Amor é Contagioso”, de 1998
UNIVERSAL PICTURES
A cantar "Blame Canada" do filme “South Park” na cerimónia dos Óscares em 2000
REUTERS/GARY HERSHORN
"One Hour Photo" (2002), um dos seus papéis dramáticos mais lembrados
REUTERS/FOX SEARCHLIGHT PICTURES
Em Dezembro de 2003 no aeroporto de Bagdad, no Iraque, com as tropas norte-americanas
REUTERS/PETAR KUJUNDZIC
REUTERS/MARIO ANZUONI
A declaração oficial, segundo o New York Times, diz que o xerife de Marin County recebeu uma chamada de urgência às 11h55, reportando que um homem fora encontrado “inconsciente e sem respirar dentro da sua residência”. Os serviços de emergência foram activados e o corpo foi identificado como sendo o de Williams, declarado morto às 12h02. De acordo com o agente do actor, Williams estava a "combater uma grave depressão". E logo então falou-se de suicídio. Williams foi visto com vida, pela última vez, no domingo, cerca das 22h, em casa. A autópsia deve acontecer hoje, segundo a polícia em declarações à AFP.
A mulher, Susan Schneider, confirmou o óbito. “Perdi o meu marido e o meu melhor amigo e o mundo perdeu um dos seus mais queridos artistas e maravilhosos seres humanos.” Pediu respeito pela privacidade da família. "A nossa esperança é que ele seja recordado não pela sua morte, mas pelos muitos momentos de divertimento e riso que proporcionou a milhares de pessoas", acrescentou. Robin Williams deixa três filhos de dois casamentos anteriores.
A imprensa americana dá conta da luta contra a depressão, o álcool e as drogas que o actor enfrentou ao longo da sua vida: os primeiros embates na década de 70 (explicou assim: "A cocaína era para mim uma forma de me esconder. A maior parte das pessoas ficam aceleradas com a cocaína; a mim abrandava-me"), as tentativas de reabilitação nas duas décadas seguintes, uma recaída em 2006, o internamento no Hazelden Addiction Treatment Center, em Lindstrom, Minnesota, em Junho deste ano, para evitar novo descarrilamento.
As várias vozes
Nascido Robin McLaurin Williams, em Chicago: gorducho, criança solitária, a brincar sozinho com os brinquedos no quarto do subúrbio, um antecedente típico para a futura energia, sede de atenção e ansiedade que marcariam os seus papéis no cinema e, nos seus inícios de actor, nos palcos da stand up comedy . Onde disparava para todos os assuntos “fracturantes”, da política, da sociedade, da cultura, chamuscando estrelas de Hollywood, presidentes, príncipes - “Chuck, Cam, que bom ver-vos”, gritou um dia de um palco londrino a Carlos de Inglaterra e Lady Camilla Bowles; apoiante de Barack Obama (“um Kennedy muito bronzeado”), quando George W. Bush saiu da Casa Branca, Williams anunciou a saída oficial da América "do centro de reabilitação.” (O que iria Bush fazer na sua nova vida? “Bom, não pode seguir uma carreira de discursos públicos. Isso ele não pode fazer... Mas pode fazerstand up comedy, porque tem oito anos de material incrível para usar".) Mas chamuscando-se, também. O público e o político, mas também o privado em palco. Assumia assim a sua dependência de cocaína, nos anos 70 e 80. “Que droga maravilhosa. Qualquer coisa que nos torne paranóicos e impotentes, dêem-me mais disso."
A série televisiva Mork & Mindy, na qual assumiu a personagem do extra-terrestre Mork, foi estrelato instantâneo e passaporte para personagens principais em cinema, como Popeye de Robert Altman (1980) – um fracasso de bilheteira, mas um filme tão bizarro como só o mainstream americano da altura podia ser e que fica como um dos mais significativos de Williams - eThe World According to Garp (1982), de George Roy Hill.
Foram contactos com uma espécie de estranheza que o actor iria tornar familiar - o segredo do seu sucesso, assim tocando em toda uma geração de espectadores -, ao contrário da energia ofensiva, suicidária, de um "papa" dastand up comedy, Lenny Bruce (1926-1966). Logo depois, essa guerrilha contra a convenção seria entronizada: Bom-Dia Vietname (1987), de Barry Levinson, como radialista na Saigão de 1960, e o Clube dos Poetas Mortos(1989), de Peter Weir, como professor, nos anos 50, que incita os alunos (Carpe diem) a desafiarem os seus tempos e a desafiarem-se.
Foram duas nomeações para o Óscar. Que conquistaria, como secundário, com O Bom Rebelde (Good Will Hunting), de 1997, de Gus Van Sant. Era um terapeuta que ajudava a personagem problemática interpretada por Matt Damon, confirmando-se um arco importante na "narrativa" das personagens que interpretou: começando por desafiar a autoridade, tornava-se ele próprio figura de autoridade, um guru. Não sem uma certa dose de paternalismo. "Piedoso" mesmo, escreveu o crítico David Thomson, que "aconselhava" Williams, na terceira edição do seu A Biographical Dictionary of Film, a "tentar alguma escuridão." E ele parece que ouviu ou deu vazão aos seus demónios pessoais: Insónia de Christopher Nolan, One Hour Photo de Mark Romanek, ambos filmes de 2002. No total, sete dezenas de títulos, mais do que uma mão cheia de Globos de Ouro.
A velocidade, a ansiedade. Para voltar a A. O. Scott, o crítico lembrava segunda-feira no New York Times uma festa no Festival de Cannes, há anos, em que ouviu várias vozes atrás de si, diferentes sotaques, "francês, espanhol, afro-americano", em conversa, tons vários a serem disparados: eram todas vozes de uma só voz, era Robin Williams. Mas mais rápido do que a voz, era a mente, isso via-se, escreveu.
David Thomson referia também isso, essa explosão de ideias a "aparecerem por trás dos seus olhos desesperados." Mas Thomson, na sua forma muito pessoal de fazer a psicanálise de uma persona, detectou em Williams "a necessidade esmagadora de gargalhada, de reacção [do espectador] e de ser gostado" que às vezes não escapava à auto-indulgência - se estaria a pensar no Williams em drag de Mrs Doubtfire (1993), pense-se também, para comparar, no Dustin Hoffman de Tootsie (1983), sinta-se aí a diferente natureza dos actores, Hoffman a desaparecer dentro da sua personagem, Williams a evidenciar-se para além da sua personagem
“So fast, so funny”. E, pelos vistos, tão assombrado pela auto-destruição. Na edição desta terça-feira da Variety, Williams é colocado no Olimpo daqueles comediantes, daqueles que começaram por se expor sozinhos com um microfone, os stand up comedians, cujo percurso pela gargalhada revela ser, afinal, um duelo pessoal sem tréguas: Lenny Bruce nos anos 1960, figura tutelar na comédia autodestrutiva, John Belushi nos anos 80, Chris Farley nos anos 90... Rimo-nos, rimo-nos, o travo agora volta a ser amargo, um logro. Coisa que, obviamente, já conhecíamos.
Em Julho de 2009 numa sessão da Associação de Críticos de Televisão dos EUA
REUTERS/MARIO ANZUONI
Um
memorial de homenagem a Williams em Boulder, Colorado, na casa onde foi rodada parte da sitcom "Mork e Mindy" MARC PISCOTTY/GETTY IMAGES/AFP
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BRUNO BADE/AFP
Com Billy Crystal no palco do Radio City Music Hall, em Nova York durante o "Comic Relief 8" em Junho de 1998
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A cantar no "Idol Gives Back" no Teatro Kodak, em Hollywood em abril de 2008
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No filme "Popeye" com a actriz Shelley Duvall
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Em Outubro de 2006 com a esposa Marsha Garces Williams durante a apresentação do filme "Man of the Year"
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Em Fevereiro de 1995 com a actriz Pam Dawber, em Nova York
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Estrela de Robin Williams no Passeio da Fama, em Hollywood
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Em Julho de 2009 durante um debate na Television Critics Association, em Pasadena, Califórnia
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Antes de Robin, Lenny, Andy, John e Chris também viveram perigosamente
JOANA AMARAL CARDOSO
13/08/2014
O riso dos palhaços pode ter um preço pessoal exorbitante. Antes de Robin Williams, houve Andy Kaufman, Lenny Bruce, John Belushi ou Chris Farley. Extinguiram-se demasiado cedo.
Com mais de uma centena de papéis no cinema e na TV, Robin Williams foi um imitador e um criativo numa forma de exposição voraz que, recorda o colunista da Variety Brian Lowry, “é mais um lembrete de que o riso extraído por alguns dos nossos melhores palhaços muitas vezes surge com um preço pessoal exorbitante”. Andy Kaufman, Lenny Bruce, John Belushi ou Chris Farley são alguns desses que sorveram os dias e se extinguiram demasiado cedo.Williams fazia imitações velozes e mash ups inesperados – Prince e Peter Pan, Truman Capote no infantário, Stallone como prostituta, Jacques Costeau num anúncio para uma petrolífera. Tudo à velocidade da luz, porque “corria uma maratona num sprint”, escreveu Robert Lloyd, crítico de TV do Los Angeles Times. E se descreve Robin Williams como um “dervixe [religioso maometano] rodopiante”, já Lenny Bruce era um “xamã cómico” para o professor de História Social Americana na Universidade de Boston.
“Se Jesus tivesse sido morto há 20 anos, as crianças dos colégios católicos usariam cadeirinhas eléctricas ao pescoço em vez de cruzes.” Lenny Bruce (1925-1966) escreveu textos para a Playboy que até hoje incomodam. Tal como Williams, recorria às imitações de figuras de Hollywood, de James Cagney a Peter Lorre. Mas só atingiria o estatuto d' “o mais doente dos doentes” dos comediantes na década de 1950, embebendo os seus números de contracultura Beat. Incómodo, pouco afável, ocupava um espaço de negrume em palco com a sua figura esguia e a crítica mordaz. Morreu de overdose aos 40 anos, mas antes descreveu-se assim: "Às vezes olho para a vida na casa dos espelhos da feira. Vejo-me como uma inteligência profunda e incisiva, preocupada com a humanidade dos homens para com os homens. E depois vou até ao espelho seguinte e vejo uma besta pomposa e subjectiva cujo humor dificilmente é espiritual. Vejo vestígios de Mefistófeles. Todo o meu humor é baseado em destruição e desespero”. Saindo em sua defesa quando dos seus problemas com a justiça, o poeta Allen Ginsberg mobilizou um texto de apoio em que Lenny era enquadrado como “um performer popular e controverso no campo da sátira social na tradição de Swift, Rabelais e Twain”.
Uma moca incrível
Tal como Dustin Hoffman foi Lenny Bruce em Lenny (1974), de Bob Fosse, também Jim Carrey foi posto ao serviço da loucura de Andy Kaufman emHomem na Lua (1999), de Milos Forman. Foi o encontro de novas gerações com a vida e a obra de "um dos mais interessantes casos de performance art", como descreveu em 2010 ao PÚBLICO Robert J. Thompson, do Centro Bleier para a Cultura Popular da Universidade de Syracuse.
Conforme a encarnação, Kaufman era desarmantemente trágico em palco na pele do estrangeiro que não comunicava claramente ou feérico ao limite na imitação de Elvis Presley. A sua personalidade e a sua persona mesclavam-se ao ponto de os fãs duvidarem da sua morte de cancro em 1984, aos 35 anos. Kaufman sempre foi taxativo quanto ao alcance da sua pulsão cómica: “Não estou a tentar ser engraçado. Só quero mexer com as cabeças deles”.
Lenny Bruce está nas origens dessa tradição, que encontrou nas décadas seguintes seguidores igualmente traídos pelas vidas rápidas do palco. “A comédia pode ser única na natureza pessoal do exercício, especialmente nostand-up, em que nada há a não ser o performer e um microfone. Poucos artistas estão tão expostos ou tão solitários no prosseguir da sua arte”, postula Brian Lowry, o colunista da Variety, a propósito de Robin Williams, recuperando exemplos como o de John Belushi ou Chris Farley.
Em 1978, Belushi era a estrela de Animal House - A República dos Cucos. O seu pasto era o excesso, algumas vezes autobiográfico, muitas vezes envolto na névoa de festa que partilhava com Robin Williams e, semanalmente, com milhões em Saturday Night Live - o programa de TV de cujo elenco fundador fez parte e no qual trabalhou com Bill Murray, Chevy Chase ou Dan Aykroyd. Tornara-se um dos mais excessivos comediantes dos EUA, “o Bruce Lee da comédia”, nas palavras do actor Tracy Morgan, pela sua capacidade de arriscar até ao limite. Morreu em 1982 de overdose no hotel Chateau Marmont, em Los Angeles. Williams foi uma das últimas pessoas a vê-lo com vida. Belushi tinha 33 anos.
O risco era também a matéria de Chris Farley que, na década seguinte, marcaria um certo ritmo da comédia na TV e no cinema. Tal como Belushi e Bruce, o comediante foi vítima das drogas - aos 33 anos, como Belushi. “Por vezes tem parecido através dos anos que, quanto mais brilhante a luz da sua comédia, mais torturados e atormentados podem ser quando as câmaras param de filmar”, escreveu Brian Lowry.
No final da década de 1970, os lares americanos ainda se familiarizavam com o veloz mas amigável Williams e ele descrevia os palcos como algo para “quebrar a depressão” do fim de uma relação e como “forma de libertação emocional” - mas também “uma moca incrível”, “como fazer carreirinhos em ondas gigantes”, uma “loucura legal”. “Podemos tornar-nos todas as nossas fantasias.” Um diário norte-americano escrevia sobre as suas actuações: “É especialmente gratificante vê-lo viver perigosamente”.
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