Um actor sai de cena — mas “Die Hard não é um filme de Natal. É um filme de Bruce Willis”
O homem que se tornou numa marca com um filme 80s pôs fim à carreira por doença. Em 1988, foi a antítese do “gajo errado no sítio errado na altura errada”.
Joana Amaral Cardoso 31 de Março de 2022

A comediante neozelandesa Hannah Gadsby esteve na terça-feira no talk show de Stephen Colbert para promover o seu novo livro, que lhe exigiu desenvolver os aspectos da sua vida que já explora na comédia stand up. “Como é que te sentiste, qual é a tua paisagem emocional?”, perguntavam-lhe, pedindo-lhe para esmiuçar mais os temas. “O que é uma paisagem emocional? Não sei”, respondeu, jocosa. Gadsby também aproveitou para dizer ao apresentador que se ele entrevistasse a sua mãe, ela o “comeria vivo”. Ela é dura — talvez não dura como Duro de Matar, o título brasileiro de Die Hard (1988), o filme essencial de Bruce Willis e o projecto que deu aos heróis de acção uma paisagem emocional que a musculatura de Arnold Schwarzenegger não suportava e que os anos 1980 não esperavam encontrar já tão perto do fim dos anos Reagan.
Quarta-feira, soube-se que Bruce Willis acabou a sua carreira. O título português do filme que o define, Assalto ao Arranha-Céus, não atinge, nem de elevador cheio de terroristas armados até aos dentes contra um persistente polícia escarninho, o impacto que teve quando Hollywood tentou dar a um herói de acção uma “paisagem emocional” mais abrangente.
Há carreiras que têm projectos definidores. Bruce Willis terminou a sua carreira por sofrer de afasia, uma doença neurológica que o impede de comunicar, e esse anúncio desencadeia agora uma avaliação precoce da sua filmografia — uma espécie de obituário da sua carreira. A escolha imediata, para certas gerações que cresceram com (mesmo muito) poucos canais de televisão, que com sorte tinham por perto alguns cinemas e, depois, videoclubes para rebobinar vezes sem conta um filme de Natal e de acção, é muito provavelmente Die Hard — Assalto ao Arranha-Céus.
Porque foi (mesmo muito) divertido e porque até hoje se vê o seu efeito nas nervuras do entretenimento de massas. E porque quando se fala de Bruce Willis, como define Daniel Arkin na NBC, se a série “Modelo e Detective lhe deu nome, Die Hard tornou-o numa marca”.

Em Die Hard, saga iniciada em 1988 com Assalto ao Arranha-Céus, Bruce Willis foi o polícia John McClane, que estava sempre no sítio errado na altura menos apropriada. O último tomo, Nunca é Bom Dia para Morrer, foi lançado em 2013 DR
Uma marca de herói de acção, do género a quem novas estrelas devem muito, um produto feito para ver e rever no clube de vídeo onde uma nova cinefilia que misturava autoria e trash se formava — o rosto mais conhecido dessa cultura “be kind rewind” é o de Quentin Tarantino. Que, em 1994, colocava Bruce Willis num dos quadros de Pulp Fiction e lhe abria possibilidades como 12 Macacos (1995), O 5.º Elemento (1997), Sexto Sentido (2000), O Protegido (2000) ou Moonrise Kingdom (2012) a par de filmes-Bruce-Willis como A Fúria do Último Escuteiro (1991), Armaggedon (1998) e todos os Die Hard que regurgitou.
A história de como se fez Die Hard espelha bem a marca Bruce Willis: um herói de segunda escolha, um actor de uma colheita de pouca memória, um exemplo descomplexado do que significa “cultura popular”. Há quatro anos, quando se fizeram as celebrações dos 30 anos do filme realizado por John McTiernan, voltaram todas as histórias do casting que sonhava mesmo ter Frank Sinatra como John McClane, e que até tentaram oferecer o papel do “gajo errado no sítio errado na altura errada” a Al Pacino. Depois, passaram aos nomes mais óbvios — Schwarzenegger, Sylvester Stallone, mas também Harrison Ford, Richard Gere, Burt Reynolds, Nick Nolte, Don Johnson ou Mel Gibson.

Em A Fúria do Último Escuteiro, de Tony Scott (1991), foi Joe Hallenbeck, aqui ao lado de Damon Wayans DR
Nem Bruce Willis, estrela de Modelo e Detective e que os portugueses conheciam dos serões das terças-feiras da RTP1, queria o papel do polícia enxovalhado de Nova Iorque que tentava salvar a sua mulher de um assalto à festa de Natal da empresa que a tinha levado para Los Angeles. Mas depois lá assumiu o protagonismo daquele que se tornaria num dos filmes quintessenciais do mainstream da década de 1980, que anunciava o ocaso dos anos Reagan e de um único modelo de grande sucesso do herói de acção. Tal como Foxy Brown em 1974 ou Ellen Ripley em 1979, ele podia ser pouco possante em 1988. Ele podia ser espertalhão e ter uma mulher que o olhava com justificada sobranceria, podia ser um cínico que não era um Rambo, nem um Comando.
Bruce Willis também foi o rosto no cartaz que anunciava a mudança em Hollywood. Gere, Pacino “eram todos demasiado bons para fazer um filme de acção. As estrelas B é que faziam filmes de acção, não as estrelas [da chamada lista] A. Mas eles estavam a tornar-se filmes-A, eram os que começavam a fazer o dinheiro todo”, contou ao site Daily Beast o gestor de produção do filme, Beau Marks. Os salários destes (sobretudo) homens, subiam. Para o bem e para o mal, forjava-se uma nova linhagem. Ainda assim, nos jornais, questionava-se se Willis “era suficientemente estrela de cinema para ser bem-sucedido”, como duvidava o New York Times.

Em O Quinto Elemento, o festim visual de Luc Besson, Bruce Willis é Korben Dallas, um taxista que lhe vê cair no banco de trás do seu carro voador a “chave” da salvação do mundo: Milla Jovovich DR
O público gostou. Ele era mais humano. E para o filme “resultar, tinha de se sentir que a personagem podia não se safar. Bruce é mais um homem comum do que a maior parte das grandes estrelas”, dizia na altura, também ao New York Times, o produtor Larry Gordon. Não era o que o cinema tornaria o seu centro gravitacional décadas depois: um super-herói. Speed — Perigo a Alta Velocidade (1994) ou Arranha-Céus (2018), são parte de um sub-género: filmes-Die Hard, outra marca.
O resto da sua carreira teve altos e baixos, e nos últimos anos, muitos baixios. Nos últimos oito anos, Willis fez 29 filmes, 23 dos quais não chegaram sequer aos cinemas e foram directos para o mercado doméstico. Foi gozado há dias nos Razzies, os “prémios” que anualmente elegem o pior cinema, e há quatro anos prestou-se a um roast em que foi humoristicamente atacado por amigos, familiares e comediantes. A marca Bruce Willis, e o filme que a apresentou ao mundo, mostrava em palco parte da sua “paisagem emocional”. Foi aí que pôs fim ao longo debate sobre se Die Hard pode figurar nas conversas regulares sobre os melhores filmes de Natal e postulou: “Die Hard não é um filme de Natal. É um filme de Bruce Willis”.

"O nosso amado Bruce [Willis] tem tido alguns problemas de saúde e foi-lhe recentemente diagnosticado afasia, o que está a afectar as suas capacidades cognitivas”, informa-se numa publicação assinada pela mulher, Emma Heming, pela ex-mulher Demi Moore e pelas filhas Rumer, Scout, Tallulah, Mabel e Evelyn. Como consequência, a família avança que o actor “vai afastar-se da carreira que tanto significado tem para si”.
A afasia é a perda parcial ou total da capacidade de expressar ou compreender a linguagem falada ou escrita e, segundo a Versão Saúde para a Família do Manual MSD, é “resultado de danos nas áreas do cérebro que controlam a linguagem”, que podem advir de um acidente vascular-cerebral, um traumatismo craniano, uma infecção cerebral, em que se distingue por não ser progressiva, ou de um tumor cerebral em expansão, em que, explica-se no mesmo texto, “conforme o tumor cresce, o mesmo pode fazer mais pressão em áreas do cérebro que controlam a função da linguagem e, assim, prejudicar a capacidade de expressar ou entender a linguagem”. Além disso, acrescenta-se, “alguns tipos de demência também podem causar afasia”. No caso de Bruce Willis, a família não adianta o que terá causado o seu estado actual, mas assume viver “um momento realmente desafiante”.

Bruce Willis acumulou ao longo da carreira figuras de herói: aqui no papel de Harry S. Stamper em Armageddon (1998) DR
Da série dos anos 80 Modelo e Detective, para as gerações mais velhas, à saga Die Hard, que atravessou dois milénios e é identificada por gente de todas as idades, Bruce Willis, de 67 anos, assumiu durante anos o papel de galã, durão, sempre com uma piada na ponta da língua, tendo pelo meio sido namorado da portuguesa Maria de Medeiros no filme de culto Pulp Fiction ou uma alma penada no aclamado Sexto Sentido de M. Night Shyamalan.
Do seu longo e ecléctico currículo destacam-se ainda filmes como A Fogueira das Vaidades, de Brian de Palma; o distópico 12 Macacos, de Terry Gilliam; ou o festim visual de O 5.º Elemento, de Luc Besson. Nos últimos tempos, porém, a carreira de Willis parecia ter entrado numa espiral descendente, com o actor a somar nomeações nos Razzies, os prémios que distinguem os piores do cinema norte-americano: desde 2019, por Death Wish, não falhou nenhuma edição.

Em O Chacal (1997) no papel do camaleónico criminoso DR

A Morte Fica-vos Tão Bem, de Robert Zemeckis, juntou Willis, no papel do Dr. Ernest Menville, a Meryl Streep, Goldie Hawn e Isabella Rossellini DR

Em Sin City: Cidade do Pecado foi Hartigan DR

Bruce Willis foi Peter Fallow em A Feira das Vaidades, de Brian De Palma (1990), filme em que contracenou com Tom Hanks e Melanie Griffith DR

No distópico 12 Macacos, de Terry Gilliam, em que contracenava com Brad Pitt (nomeado para melhor actor secundário), era James Cole DR


Em O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan (1999), Willis foi Malcolm Crowe, um psicólogo que é assassinado, mas continua ligado à vida terrena DR

Modelo e Detective lançou Bruce Willis para o estrelato. A série televisiva foi um sucesso entre 1985 e 1989 DR

Em filme de culto Pulp Fiction, de Quentin Tarantino (1994), é Butch Coolidge (e volta a estar mais uma vez no sítio errado à hora errada) que tem como namorada a portuguesa Maria de Medeiros DR
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